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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

Fragmentos de vidas raianas, 1978 a 1981 - XI

melgaçodomonteàribeira, 26.05.18

 

 

Continuação do post do 12 de maio de 2018.

 

 

Nessa manhã, exaustos, depois de mais uma madrugada uniforme em que tinham o sentimento de serem os raros sobreviventes do lugarejo, transpuseram a estrada e empurraram a porta do familiar café. Os rostos, assolados pelo trabalho ininterrupto e opressivo, denunciavam o cansaço compilado durante a noite. A roupa, vetusta, suja e enfarinhada, dava-lhes uma triste aparência de foragidos.

O panificador e o jovem ajudante fincaram-se no extenso balcão, estenderam os cacetes recém-cozidos à Rosa e pediram as habituais sandes: hoje seriam de presunto. Concertavam-se anteriormente e concordavam sempre em comer ambos o mesmo acompanhamento.

A uma das mesas do café, uma parelha de camponeses de certa idade querelava-se incompreensivelmente, increpando-se mutuamente. Segundo a Rosa, havia mais de uma hora que esperavam pelo improvável aparecimento de um taxista que se comprometera a conduzi-los a Padrenda; contavam regularizar um problema importante no ayuntamiento – junta de freguesia.

— Quantos cacetes quereis hoje, Rosa?

— Eu sei lá! Olha, traz oito, como ontem; depois, se precisarmos de mais, vê-se.

O padeiro fez um gesto da cabeça, o ajudante sumiu-se e regressou decorridos dois minutos com os oito cacetes.

Quando sobrava pão, depois de feita a repartição pela esposa do Fernando, confiavam a chave da padaria à Otília que, com todo gosto, se incumbia de corresponderer às eventuais demandas da clientela. Era o ensejo para uma hipotética conversa.

— Onde anda o sorna ? – o Manolo – Diz-lhe que a mulher despertou e quer o café.

A moça riu. Tinha uma repulsão ínsita pela patroa. Portanto, esta considerava-a mais como uma colaboradora do que como uma criada.

Quando o marido se deslocava a Ourense por exigências comerciais, a Maribel, uma vez por outra, acompanhava-o e, diligentemente, percorria uma ou duas galerias –centros comerciais. Nunca menosprezava a empregada. Carinhosamente, brindava-a com uma peça de roupa interior, uma camisa qualquer, um tecido para fazer uma saia ou um vestido, um perfume de qualidade...

— Estás doido! Ela não o quer. Quem ligaria a um homem como ele? – e deu uma risada – Anda no outro lado a pôr um pouco de ordem nas mercadorias – confessou por fim.

Naquele instante, saiu ele de trás da cortina da cozinha, excitado.

— Vai-te embora, Rosa! Vem aí o senhor Ângelo. Vamos gracejar um pouco. Vais ver como o enervo. – disse ao Fernando.

No país onde os desconhecidos se tuteavam, fosse qual fosse a idade duns e doutros, o Ângelo, ferroviário reformado, era a irregularidade notável. Fazia parte dos raros homens da Frieira a quem todos tratavam, invariavelmente, por senhor.

Tanto no verão como no inverno, exibia orgulhosamente pelas costas, quase como um troféu, um grosso capote castanho com o logótipo da companhia estampado no lado esquerdo. A cabeça, que abanava continuamente, trazia-a resguardada pela típica boina galega. Tartamudeava e articulava muito baixinho. Era, além disso, homem duns tiques pasmosos, excêntricos, mas cómicos: dava aos ombros repetidas vezes, tirava pela gola direita do capote com a sinistra, e vice-versa; depois, alçava o pé sestro ligeiramente, imitado imediatamente pelo direito. Era uma coreografia incontestável.

Segundo constava, estes gestos eram a sequela de um ritual que praticara sem restrição durante a vida que trabalhara nas linhas galegas da RENFE – caminhos de ferro espanhóis. Para não perturbar a trâfego, os trabalhos nas vias são efectuados de noite, maioritariamente; ora o senhor Ângelo fora capataz – chefiara uma equipa de dez trabalhadores – e, como é logico, não se movia muito. Durante as noitadas invernais, para que o frio não se assenhoreasse dele, supõe-se que operava estes meneios centenas de vezes, cadência que, com o tempo, acabara por se tornar mecânica e incontrolável.

Ademais destas digressões, soliloquiava imperceptivelmente de modo constante. Nunca falava com quem quer que fosse, nem nada o interessava ou comovia. Limitava-se a saudar as pessoas com um respeituoso aceno de cabeça sem nunca suspender a sua deambulação ramerraneira, como se fizesse tudo para se fundir no meio, dar a impressão de ser invisível.

Morava do outro lado da ponte, numa casinhola, a dois passos da estação dos caminhos de ferro, como não podia deixar de ser.

Matrimoniara-se com uma costureira, mulher muito interesseira, egoísta, cujo ódio que afeiçoava se lhe via na cara engelhada: a Henriqueta. Só se entendia  com as mais linguareiras da aldeia. Dizia-se que nada podia subtrair-se aos seus olhos de fuinha. Despudorada como poucas, tinha livretas em todos os comércios da zona, nomeadamente nos que vendiam tecidos. Os credores, apesar de a acossarem, viam-se na incapacidade de cobrar as dívidas que lhe foram consentindo acumular.

Tanto na Frieira da margem direita como na da esquerda, já ninguém se recordava de quando o senhor Ângel e a Henriqueta tinham sido vistos juntos ou a falar em público pela última vez. O domicílio era o único espaço que ainda os achegava corporalmente. Os ralhos, pontuais e ríspidos, eram a discussão exclusiva entre eles de que os vizinhos depositavam.

Ao senhor Ângel, nem todos os dias o blanco – vinho branco – lhe instilava a disposição satisfatória para digerir a maldade e as insinuações biliosas da mulher. Quando a discórdia rompia e percebia que a sua metade não tardaria em ultrapassar a linha exacerbante que ele lhe autorizava, ajeitava a boina na cabeça, deitava o capote pelas costas e, mais uma vez, fazia a mímica crónica; dava uma vista ao relógio de bolso e, se lhe desse tempo, encaminhava-se para o pequeno bar de As Neves, três casas acima da dele. Abancava ali e bebia umas chiquitas – tigelas – enquanto pacientava pelo comboio.

Podendo viajar gratuitamente, como todos os aposentados da RENFE, era o epílogo preferido para estas peripécias glaciais. Entrava no primeiro comboio que ali fizesse uma alta, sem se alarmar com o paradeiro, e só reintegrava o domicílio no outro dia, conforme a inclinação. Os diversos amigos, ex-ferroviários ainda vivos, tinham a porta sempre aberta para ele. Havia anos que trocara a companhia da mulher pela do vinho branco e dos camaradas, muito mais acomodatícios e sociáveis do que a ominosa mulher.

 

Continua.