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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

SOFRIMENTOS INSENSATOS XVI

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

XVII

Às sete e meia da manhã, a Palmira e o filho estavam sentados à mesa da cozinha. Era domingo. Cada qual tinha diante dele uma malga de sopas fumegantes. Para ela, a comida tinha de estar bem quente, ainda que tivesse que esperar ou soprar-lhe, de outro modo, não a queria. Tinham-se encontrado na cozinha, lavado a cara e preparado a desjejua sem se terem dirigido uma só palavra. Evitavam cruzar o olhar. A Palmira tinha a cara particularmente ressequida pelo cansaço físico prematuro mas também pelos pensamentos que, durante a noite, lhe tinham, sem dúvida, escavado a alma. Via-se que tinha vontade de dizer qualquer coisa mas não encontrava as palavras na sua cabeça perturbada. Gostaria de lhe dizer o que a feria, que lhe causava dor, o que lhe apertava o coração e a sufocava. O que não devia ter feito, nem pensado. Em vão ! As palavras fugiam-lhe da boca. Respirou intensamente, vencida, como quem nada tem que dizer, que nada pode fazer.

O Armindo foi o primeiro a acabar. Arrumou a malga no lava-louça e, quase como se falasse sozinho, informou :

— Bou arrumar ôs animais enq’anto você s’ocupa da minh’àvó.

— Está bem, Mindo – respondeu-lhe com uma voz quase inaudível.

Aparentemente, excepto a voz dela, nada era diferente das outras manhãs de domingo. Enquanto a sua mãe, pensativa, acabava as sopas,  preparou a lavadura e, depois de pôr o chapéu na cabeça, saiu para o patamar. O Fedelho esperava por ele, como estava habituado a fazer. Tinha chuviscado de noite. O chão estava  molhado.

Às nove e meia, depois do sino tocar pela segunda vez, estavam os três vestidos e preparados para ir assistir à missa dominical. Elas vestiam, practicamente, a mesma roupa preta que nos outros dias, só que esta estava quase nova; o Armindo metia o último fato, também preto, que o pai lhe mandara fazer, havia mais de três anos, e uma camisa dum branco imaculado. A manga do braço maior começava a ficar-lhe um pouco curta. A Delfina, fincada na bengala com o braço direito e, com o esquerdo agarrado ao da filha, foi descendo cuidadosamente o caminho até à velha igreja.

No interior da pequena capela, as pessoas do lugar, numerosas, apertavam-se nos bancos. Do lado direito, os homens, do esquerdo, as mulheres. Na primeira fila, estavam sentados o Beites da loja, o Rogério e o Arsénio, o ferreiro, que era zarolho. Os três, vestidos de preto como todos os outros, tinham os chapéus na mão, mostrando a cabeça resplandecente de brilhantina. O ar principiou a ficar mais pesado. O cheiro da água de colónia barata de que todos se encharcavam, misturado ao do fumo de que as roupas se impregnavam com o tempo, e ao do incenso da capela, tornava o ar irrespirável.

A missa foi evoluindo com normalidade até que o padre subiu ao púlpito e se agarrou a ele com as duas gordas mãos. O móvel gemeu sob a pressão do sacerdote. Era o momento do sermão. A atmosfera dominical propagou-se lentamente pela igreja. Os aldeões limparam a testa gordurenta com o lenço e aclararam a garganta como se fossem eles que iam falar. Fez-se silêncio, um silêncio de espera, de apresto. A voz rouca e robusta do padre encheu a nave.

O Armindo estava sentado ao lado da avó, sonolento. Não gostava nada daquele calor humano perfumado de incenso que lhe dava sono. O seu olhar passeava, indiferente, pelos rostos pios e idiotas. A sua avó não parava de cheirar o raminho de sálvia que trazia sempre no bolso. O incenso também a incomodava. Atrás, alguém tossiu roucamente. O rapaz tentava distraír-se reparando em tudo excepto na homilia. Portanto, o padre arengava cada vez mais alto e, sob a sua voz tonitruante, as velhotas, desdenhosas, cabeceavam como se estivessem na casa.

O padre, que parecia olhar olhar para eles, falava de pecado, cada vez mais furioso. “Contra quem está ô home zangado ?”– perguntou-se o Armindo.

— Satanás só vos oferece o pecado; Deus, na sua bondade, oferece-vos a virtude, a paz da alma ! Podeis escolher libremente mas, depois, virá a hora da expiação.

A Delfina apertou o braço do rapaz que olhou para ela, no momento em que o padre continuou a falar das pessoas más, das mulheres culpadas.

— Nunca é tarde para entrar no bom caminho ! – gritava – Se estas criaturas se perdem no meio de vós, tendes que repeli-las sem hesitação, assim como o Senhor as repelirá do seu trono para o fundo do inferno !...

Sentiu-se um movimento na igreja. A voz do padre assobiou, cava, até ao fundo da igreja.

— As más mulheres estragam os homens corajosos e honestos e desonram as famílias; podem esconder-se dos outros, mas nunca se poderão esconder de Deus!

Atrapalhado e enraivecido com as palavras cuspidas pelo padre, o Armindo olhou disfarçadamente para a mãe. Estava de olhos fechados, branca, não como um morto, mas quase como a própria morte. Fazia um esforço monstruoso para não desatar a chorar.

O sermão acabara. O padre ficou direito, ofegante, à espera que a respiração voltasse à normalidade, antes de pôr termo à missa. O Senhor nasceu e morreu no altar, com precipitação.

Os olhos do rapaz fixaram-se no Cristo, deteriorado pelas inclemências do tempo, que se elevava diante das filas de bancos e estendia os seus dois braços feridos na cruz com um ar de triste misericórdia. Enquanto olhava para o Salvador, que tanto amara o mundo, sentia um ódio abrasador pelo padre, por todos os que ali se encontravam.

Os que estavam no fundo dirigiram-se para a saída. Depois, foi nos primeiros bancos que começou a agitação. Do ar requecido voltou a exalar o cheiro a chamusco, a pomada rançosa. Dirigiam-se devagar para fora, empurrando suavemente, o rapaz, a avó e, de cabeça baixa, a mãe. A sua cara continuava pálida, os cantos da boca enrijecidos. O rapaz, com os olhos vazios, olhava para as costas redondas das pessoas que se puxavam para a claridade da porta, mas não via nada.

Fora, faziam-se grupos de três ou quatro que depressa se desfaziam para ir formar outros mais adiante. A Delfina, como sempre, não teve dificuldade em arranjar um lugar num banco ao lado de outras pessoas. O neto e a filha ficaram por detrás dela, de pé. O ritual costumeiro começou. A gente vinha saudá-los amigavelmente mas a Palmira, cujas palavras lhe saíam espontaneamente, não estava ali. O seu rosto não tinha pinta de doçura e permanecia vago e frio.

É natural que, quando um incidente ou um súbito terror nos surpreende indevidamente, a impressão seja mais forte do que se fosse noutras ocasiões, seja por ser inesperado, seja porque os nossos sentidos, estando alerta, são mais susceptíveis de sentir uma emoção forte e rápida. As palavras do padre tinham-na incomodado solidamente e fizeram-lhe perder a pouca vontade que lhe restava. Na cabeça, sentia um tumulto surdo que a impedia de pensar e lhe dava a impressão que tinha recebido uma enorme pancada no peito e cuja dor ainda era confusa. Estava mergulhada num desânimo que a fazia sentir-se inquieta e agitada.

A mãe virou-se e deitou-lhe um olhar de terna compreensão e da mais doce compaixão. Não sabia se queria consolar a filha ou se se queria consolar a ela própria.

— Bamo-nos, minha filha ! – pediu-lhe.

Não foi ouvida. A alma da filha estava tão agitada que era surda a qualquer exortação exterior. Agarrou-lhe na mão, que apertou, e repetiu-lhe o pedido. A gente discutia sem fim, saboreando aqueles curtos e raros momentos de convívio. Cuidadosamente, puseram-se a caminho da casa, evitando as poças de água que a chuva fizera durante a noite e nas quais o sol principiara a tomar banho.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XV

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

A Áurea, consciente da hora, resolveu parar diante do mostrador da pastelaria onde, às vezes, isto é, quase sempre, sucumbia à sua insuperável fraqueza: os mil-folhas. Pediu dois para ela, dois de coco para a mãe da Natália e mais dois de nata para o pai. À tarde, se estivessem disponíveis, podia tomar um chá com eles e passar uns agradáveis momentos de convivência. A vendedora, uma moça simpática que já a conhecia, preparou-lhe a caixinha de papel que atou com uma linda fita avermelhada de plástico. No preciso momento em que se virou com o fim de prosseguir o caminho, sentiu alguém chocar contra ela, projectando-lhe a caixa com os pastéis para o chão. Não teve tempo de baixar-se para apanhá-la. Um homem jovem, com poucos mais anos do que ela, recuperou-a prontamente e devolveu-lha desculpando-se apressadamente.

— Lamento muito o acontecido, minha menina ! Sou um cabeça no ar ! Peço-lhe mil vezes perdão pelo imenso incómodo que lhe causei.

A Áurea, confusa, não conseguiu articular uma palavra. Ficara suspensa no profundo e insinuante olhar do jovem que a subjugava agradavelmente. De aparência ordinária, com um palmo a mais do que ela, só a vasta cabeleira frisada cor de castanha o distinguia, dando-lhe um ar de intelectual. Antes que pudesse recobrar o sangue-frio que regularmente a caracterizava, ouviu-o dizer que se chamava Pedro e pedir-lhe afavelmente que, para se fazer perdoar o gesto condenável de que fora o culpado, aceitasse tomar um café ou qualquer outra coisa na sua companhia. Sem saber como, sentiu os lábios mexer e um “está bem” tímido, quase que aflitivo, escapou-lhe da garganta.

Agarrou-lhe delicadamente no braço e entraram na pastelaria. Perdida, sentou-se na primeira mesa vazia que encontrou. Não se sentia bem nem mal, sem contudo saber o que realmente a tinha perturbado tanto. Tivera que obedecer, involuntariamente não pudera resistir. E, ao mesmo tempo, sentia-se segura e satisfeita interiormente, como se fosse qualquer coisa há muito decidida, predestinada. Distraidamente, respirou profundamente para evacuar o stress inicial. Tinha que dominar-se.

— Chamo-me Pedro, mas creio que já lho disse. Você é que ainda não me disse como se chamava ou fui eu que não ouvi ?

Não queria levantar os olhos. Tinha medo de enfrentar aquele olhar tão profundo e enigmático que penetrara nela intimamente mas que, ao mesmo tempo, libertava uma confiança suavizante, aquietante. Conseguiu esboçar um tímido sorriso para lhe responder.

Pediram um café e um carioca de limão. Reparando no seu nervisismo, no seu temor, foi ele que falou. Pausada e distraidamente, contou-lhe que era fotógrafo e tinha o estúdio do outro lado do rio, na estrada de Novelhos. Fazia o que todo fotógrafo faz : casamentos, baptizados, comunhões, fotos para os bilhetes de identidade, passaportes, recordações, etc. No entanto, o seu íntimo desejo era, num curto futuro, ter possibilidades de dar asas à sua grande paixão : a fotografia de arte. Tinha vinte e oito anos e era solteiro. Nascera na Barca mas fora criado por uns tios na casa dos Arcos onde residia e tinha o estúdio. Calou-se. Pegou na chávena que até ali desleixara e foi tomando o café já tépido aos golinhos.

Ela, que inicialmente agarrara a chávena com as duas mãos, tal era a tensão que a afligia, deixara-se distender gradualmente à medida que ele se ia exprimindo. Os seus reflexos, até ali confusos e desordenados, foram retomando o curso normal, depreendido. “Já chega, disse para si, pareço uma criança diante do pai natal !” Sentia-se ressentida consigo mesma. Que lhe passara ? Riu-se interiormente. Se era a isto que os românticos franceses, que ela conhecia modestamente, apesar de ter lido alguns, chamavam o “coup de foudre”, tinha recebido uma forte descarga, pensou jovialmente. Decidiu refrear-se de vez. Não fazia parte dos seus princípios subjugar-se a quem quer que fosse, sobretudo quando acabara de o conhecer. Olhou para ele no momento que pousava a chávena. Os olhares cruzaram-se e cumpliciaram-se com ternura. Voltava a ser a Áurea escrutadora, curiosa, que tinha vontade de fazer estudos de sociologia.

— E você ? – inquiriu ele sorrindo-lhe.

Já sossegada, disse-lhe de onde era, que exercia como professora em Penacova, onde vivia e que tinha vinte e quatro anos. Desleixadamente, omitiu de dizer que era solteira, coisa que ele não lhe perguntou. Fôra breve propositadamente. As impressões tinham que ser amadurecidas antes de ela se empenhar. Olhou para o relógio e desculpou-se, dizendo-lhe que tinha que volver à casa. Levantaram-se e foi no passeio, antes de se despedirem, que ele lhe perguntou:

— Foi um imenso prazer para mim conhecê-la, Áurea. Acha que podemos voltar a ver-nos ?

Sorriu-lhe uns instantes fixando-o bem e, finalmente, acabou por abanar a cabeça afirmativamente. Marcaram encontro ali mesmo para o próximo domingo de tarde. Pôs-se a caminho da casa. O saco plástico com as meias e o cachecol, assim como a caixa com os pastéis, ficaram esquecidos por cima da mesa da pastelaria.

Em poucos minutos, a alameda ficara practicamente deserta. Os feirantes, com um tachinho de comida no regaço, que muitos deles iam guarnecer às pensões, iam comendo ao lado ou dentro das tendas. Havia sempre pessoas que aproveitavam esta hora de pouco movimento para fazerem compras.

XVI

Eram oito da noite quando o Armindo empurrou o portão e penetrou no quinteiro. Trazia na mão a cana de pesca com o carreto Mitchell que o Salvador tinha reparado. Na janela da cozinha, havia luz. O Fedelho, como se não o visse há muito, e apesar da escuridão, foi ter com ele a meio do quintal e, satisfeito, esfregou o minúsculo focinho contra as suas pernas. O rapaz, encantado, pôs um joelho no chão e fez-lhe umas festas na cabeça e no pescoço. À mãe tinha-lhe devoção, como a um patrão, a ele tinha-lhe amizade, como a um irmão. Ao chegarem às escadas da casa, o animal ficou a vê-lo subi-las, abanando o exíguo rabo e piscando os olhos à vista dos fachos da sua lanterna de bolso, antes de regressar para o quente sossego da casota.

Receoso do ambiente que ia encontrar, e apesar de sentir uma energia intensa que naturalmente lhe devia facilitar ou, no pior dos casos, condicionar os esforços que estava prestes a consentir-se,  preservava uma determinação prudente.

Abriu a porta da casa que chiou e a primeira visão e sensação com que ficou ao entrar tranquilizaram-no. Teve a impressão de que o esperavam. A avó, imparável, instalada na sua cadeira de balanço, ao vê-lo, sorriu-lhe com afecto. Tinha cara de quem estivera a dormitar. Devia ter acordado com a lamúria da porta. Para o Armindo, o seu gesto foi uma maneira de sossegá-lo e de lhe dar confiança. Arrimou o pau ao muro ladeiro da porta e pousou a lanterna e a cana por cima do comprido móvel.

A mãe, de costas para ele, acabava de lavar a louça que ela e a avó tinham utilizado para cear e que se compunha de dois pratos fundos e dois copos. Por cima da mesa, à qual o moço se tinha sentado, havia um pedaço de pão fresco que ele agarrou e começou a mordiscar sem dizer uma palavra. Na lareira, ardente, o caldo esperava pela colher que o liberasse do calor do braseiro e o deixasse saborear uns momentos de agradável amenidade num prato.

— Côm’algo, Mindo ! Ô pam sim mais nom t’ench’a barriga, meu netinho ! – instigou-o a avó.

O rapaz, ferido, confuso e cansado como se sentia, limitou-se a esboçar uma careta de agradecimento. Durante uns segundos, instalou-se um silêncio pesado. Um silêncio daqueles que não eram mais do que um interregno. Ouviam-se estalar as achas de carvalho, ainda verdes, das quais se desprendiam fortuitamente fagulhas com cores tão matizadas que faziam pensar num fogo de artifício.

— Quêres que te faça algo, Mindo ?

Fora a mãe que, inesperadamente, sem se virar, num tom intermediário, lhe fizera a pergunta. Desconcertado, o rapaz olhou para a avó e descobriu no seu rosto, no seu olhar, cheios de ternura, um encorajamento e, sobretudo, uma amostra de que, apesar de velha, não deixava de ser a pessoa com mais autoridade moral.

Teriam falado as duas ? Em todo caso, vista a atmosfera, não tinha havido altercação.

— Nom senhor, nom quero nada. Chega-m’ô caldo.

Não conseguiu pronunciar o vocativo, “minha mãe”. Novo silêncio. Sem uma palavra, a Palmira pegou no candeeiro de louça que acendeu e, como fazia diariamente, acompanhou a mãe à retrete, levou-a para o quarto, ajudou-a a vestir a camisa de noite e a deitar-se. Encostou-lhe a porta e, com o candeeiro na mão, foi para o seu quarto silenciosamente.

O Arminto suspirou. Sentia-se mais extenuado do que se tivesse passado o dia a cortar feno sob um sol ardente. Mexeu bem o caldo com a grande colher e pegou numa malga que encheu até não caber mais. Verificou se havia vinho na caneca e encheu uma tigela. Sentou-se e, por uma vez, comeu vagarosamente, saboreando delicadamente o caldo. Estava a retardar a hora de se deitar. Tinha receio da noite.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XIV

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Antes de chegar ao cruzeiro, distinguiu imediatamente três vultos. Eram sempre os mesmos. Não se atrapalhou.  Se por azar o provocassem, iam ficar a saber com que lenha se aquecia. Escolhiam mal o momento de o importunar ou de lhe procurar pulgas na cabeça. Quando chegou junto deles, disse-lhes, sem parar:

— Que boa bida tedes ! Atê parêce que bibides nô cruzeiro !

Surpreendidos, riram e um deles convidou-o:

— Aonde bás a esta hora, Mindo ? Fica aqui c’ôs homes, connosco é que tu estás bem, anda !

— Bô ! S’inda aprendesse algo ! – e, sem lhes prestar mais atenção, continuou pelo meio do lugar.

Passou diante da igreja. Duas velhas tílias, com galhos frondosos, cobriam a pequena praça e os quatro bancos de pedra que ali havia. Continuou até ao fim do lugar. Do lado direito, um lindo fontanário de granito, marcava o fim do lugar e o princípio do caminho de Cubalhão. A lua nascente emergia das montanhas sem pressa. Andou até avistar um agregado de sombras, o pinheiral, através do qual mal se distinguia o caminho que continuava para Cubalhão. Do lado direito, de onde o horizonte se descobria, deixando ver aqui e ali, ao longe, umas lânguidas reverberações de luzes nas Cortelhas e em Parada, descia uma vereda sinuosa com aspecto de ser pouco usitada. Tirou a lanterna do bolso e, auxiliando-se com o pau, foi descendo calmamente.

Ao cabo de uns metros, ouvia-se o ruído irregular de água a caír para um tanque. A frescura e a vegetação, favorecida pela primeira, eram predominantes nas paragens. Poucos metros a seguir ao tanque, do lado esquerdo, perdurava um carvalho extraordinário, velho de vários séculos, maquilhado, sabe-se lá por quantas temporadas acumuladas e bronzeado por dezenas de trovoadas. A casca era rugosa, espessa, como que mineral. Parecia um tronco cortado num penedo. Indefinidos e inextricáveis galhos brotavam deste tronco, engendravam-se uns nos outros, multiplicando-se constantemente. Ao lado, quase que dissimulada pela gigantesca árvore, a casa do Salvador.

Era uma casa pequenita, com um imponente lilás que se esbanjava por cima da única porta e lhe dava um ar irrealista. Tinha duas janelas, mas só numa luzia uma fraca luz. Os muros, autênticas miscelâneas, estavam remendados com materiais que, para outros, seriam inutilizáveis. Dum lado e doutro, a sucata, o ferro-velho, as madeiras, pedaços de cancelas, de arados, rodas e outros materiais, de toda natureza e formas,  amontoados, davam ao conjunto a aparência de uma escultura moderna. Da pequena cheminé, saíam pequenas nuvens de fumo. O Armindo não compreendia como ele podia viver sozinho num sítio tão isolado, sem mesmo ter um cão. Achava impossível que uma tal solidão conviesse a um homem da sua idade. Apagou a lanterna, que meteu no bolso, e deu duas pancadas leves na porta. Esta abriu-se imediatamente, como se o homem estivesse por detrás da porta à espera. Ao deparar com o rapaz, o rosto fendeu-se-lhe num sorriso leal e prazeroso.

Tinha o físico de um homem de mais de cinquenta anos, pequeno, atarracado, de largos e sólidos ombros. Tinha a pele tostada e curtida pelo sol, uns olhos pequenos e penetrantes e uma bela cabeleira grisalha. Apenas tinha barba no queixo e, nos dois lados da boca, tinha aquelas duas grandes rugas, que mais pareciam sulcos, e que revelam os longos mutismos dos solitários. Vivia sossegado. Chegara ali como um infeliz que, sob o peso esmagador do seu fardo, se arrasta no caminho sem desanimar, unicamente interessado em contemplar libremente a luz do céu. Tinha construido nele próprio um mundo só para ele. Era feliz por ser um homem que, por mínimo que fosse o seu poder, tinha conservado o suave sentimento de liberdade nas profundezas do coração. Dali, com um simples olhar, podia abraçar os vales no fundo e, logo a seguir, os montes que tentavam fazer barreira aos ventos carregados de humidade que vinham do mar. Só alguém como ele, que tivesse dado alguns passos na vida, podia conhecer as secretas influências exercidas por um lugar na disposição da alma. Só alguém como ele podia conhecer os mugidos, os lamentos, os uivos dos montes. Eram as suas entranhas, o seu paraíso.

Mandou-o entrar e sentar-se à pequena mesa que tinha no meio da peça. O primeiro olhar bastara-lhe para descobrir no rosto do rapaz que alguma coisa o afligia. Sentaram-se um diante do outro. O Salvador falava pouco, como todos os homens do monte. As palavras, os gestos tinham uma grande importância. Tudo se ouvia, se via ao longe.

O Armindo não ousava olhá-lo nos olhos. O que se passara com a mãe instigara-o a vir ver o amigo. Não que fosse para lhe pedir conselho, mas, como lhe tinha dito a avó, para saber se o que a mãe fazia há muitos anos era assim tão excitante, inevitável, fatal.

— Entôm, Mindo, que te passa ? Algo t’atormenta, nom ?

O rapaz não sabia como começar. O que o Salvador lhe tinha prometido fora há bastante tempo e, agora, receava a sua resposta. Perguntou-se por que é que nã tinha ficado na casa. Era demasiado espontâneo e, depois, quando já era tarde, arrependia-se.

— Tem algo de beber, Salbador ? Uma copa d’augardente ?

— Si, home, si ! – retorquiu.

Lembrou-se de um pedinte que vira pela primeira vez quando ainda era miudo e que vinha de vez em quando mendigar a Orjás. Gostava muito de aguardente e então contava que, quando Deus criou o frio, a fome e a velhice, teve piedade dos homens e, para lhes dar algo de bom, criou a aguardente porque, com ela, podemos esquecer o frio, a fome e a velhice.

O homem levantou-se e foi a um pequeno armário, todo de madeira, de onde tirou uma garrafa e dois cálices. Apenas acabara de encher o primeiro e já o rapaz o levava à boca, esvaziando-o de uma só vez. Ficou uns instantes com a boca aberta. A aguardente, por onde passara, queimara-o, liberando umas baforadas de calor que lhe deram coragem para falar.

XV

Havia muita mais gente do que quando a Áurea chegara à feira. Era natural. De bom humor, quase que sorrindo, bolsa a tiracolo e o pequeno saco plástico na mão, passeava com normalidade o olhar perscrutador pelas pessoas que ia cruzando. O sol e o azul do céu continuavam preponderantes ainda que algumas nuvens acinzentadas  viessem intrometer-se, momentaneamente, diante dos raios amarelados.

Os deliciosos odores,  que se propagavam das abundantes pensões e cafés que havia daquele lado da alameda, faziam crescer a água na boca. Entre eles, o cheiro do prato mais apreciado e consumido pelos arcuenses no dia de feira, as tripas. Até a dona da casa onde ela estava hospedada, quando a preguiça a entorpecia, ia a uma tasca junto da estação das camionetas buscar um tacho de tripas e outro mais pequeno de arroz seco para comerem todos à noite. Era um costume nos Arcos.

Passava das onze. O pessoal dos numerosos restaurantes principiara a atarefar-se em volta das mesas. Os preparativos deviam ficar findos a tempo. O meio dia estava próximo e umas centenas de bocas famintas não tardariam em precipitar-se para os restaurantes de toda a vila. Os da alameda, que estavam melhor situados, não eram suficientes para restaurar, ao mesmo tempo, tanta gente. Para alguns camponeses e montanheses, para os quais a vida ordinária custosa não era portadora do mais pequeno momento de folguedo, a vinda à feira ocasional era um dia de festança, cujo auge era o momento do repasto na pensão. Regalavam-se com iguarias que, ou por razões financeiras, ou por falta delas nas lojas da aldeia, não podiam degustar periodicamente.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XIII

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Os raios de sol tímidos, mas ainda tépidos, que entravam pela janela fizeram-no pensar noutra coisa e deram-lhe coragem para se levantar. Quando passou diante da porta entreaberta do quarto da avó, ouviu-a ressonar profundamente. “Devia-se ter deitado tarde, coitada”- pensou. Havia muito que a avó lhes tinha dito que, às noites, quando ela o chamava, o seu Bilinho vinha ter com ela e passavam horas a falar. Só ela o podia ouvir. E, claro, ela punha-o ao corrente de tudo que se passava na casa. Sabia que não acreditavam nela, que faziam de conta e era-lhe igual. Tinha-lhes dito: “Hai cousas que nom se podem ber nim entender; hai que bibir-las, que sentir-las.”

Foi para a cozinha e, depois de lavar a cara, preparou as sopas. Já decidira como utilizar o dia. Levava o gado até ao monte e, de tarde, trazia-o de volta antes das horas habituais para ir à casa do Salvador. Meteu uma peça de pão no saco de pano, pegou numa faca e na garrafa que habitualmente levava e, com o pau na mão, foi à adega. Encheu-a de vinho, cortou um pequeno pedaço num dos presuntos ali dependurados e pegou numa chouriça de carne. Pôs o saco a tiracolo e foi abrir a porta das vacas e das cabras. Tanto umas como outras, depois de terem passado um dia  sem ver o sol, manifestaram-lhe agrado balando e mugindo e apressando-se de sair. As cabras diante, as vacas no meio e o Armindo atrás, ritmados pelo som discordante dos chocalhos, começaram a  percorrer com enorme prazer o caminho que há muito conheciam e os levava ao lugar onde sentiam um pouco de liberdade.

Depois de deixar as vacas no campo, cuja erva tinha revigorado graças à fina chuva, continuou molemente até ao azinhal. As cabras, ao sentirem-se no meio natural de que gostavam, atiraram-se como loucas aos pilriteiros, amoreiras e espinheiros.

Encostou-se ao eucalípto e tentou afugentar as nefastas palavras que todavia lhe martelavam o cérebro. Com as impressões que se sucediam a um ritmo infernal no seu cérebro sensível, e que lhe exasperavam os frágeis nervos, pouco lhe faltava para pensar que era o instrumento de uma maldade desconhecida ou da ira divina. O seu espírito abandonado tinha-se enchido, pouco a pouco, da horrível imagem da ferida que, embora invisível, teria que, a partir dali,  tentar esconder como uma desonra. Percebeu que o pouco de harmonia inteligente que lhe restava na cabeça tinha sido completamente destruido. Um fogo interno e violento, que minava todas as suas faculdades, umas através das outras, produzia os mais funestos efeitos e acabaria por lhe deixar uma opressão ainda mais penosa de aguentar do que todos os males contra os quais tinha lutado até agora. Os chocalhos e os estalos dos galhos secos, provocados pelo sol, eram os únicos ruídos que ouvia. Sentia uma perturbação desconhecida por detrás da fronte. Nunca imaginara que houvesse tantos pensamentos no mundo que lhe pudessem invadir a cabeça. Até ali, não tinha havido quase nada na sua vida, à parte os montes, o gado, a missa do domingo, o frio, o calor, o moinho, os gracejos dos amigos... Presentemente, tudo estava incompreensivelmente mudado. Apetecia-lhe devolver a alma ao Criador.

XIV

Regressou à casa por volta das cinco. Depois de prender os animais, seguido pelo Fedelho que gostava de mostrar às cabras que era ele o dono, subiu à casa arrumar o saco do farnel. Apenas conseguira comer meia peça de pão e umas finas fatias de presunto. Tinha um nó no estômago que o impedia de engolir a comida. No entanto, a garrafa de três quartos de litro de vinho esvaziara-a.

A avó estava sentada na cadeira. Ia ficando cada vez mais pequena e encolhida. O garruço de pano branco que tinha na cabeça, e que, habitualmente, punha para dormir, relevava-lhe as rugas da cara e dava-lhe ao rosto de velha uns tons delicados de cera. Tricotava mais um par de meias. Apesar da idade avançada e de ver menos do que há uns anos, não precisava de óculos. Naquele momento, a alegria que lhe deu a visão de serenidade da avó fê-lo realmente sentir por ela um puro respeito filial, talvez o que tinha perdido à mãe. Aproximou-se dela, agarrou-lhe delicadamente a frágil cabeça com as duas mãos e deu-lhe um prolongado beijo na testa como não se lembrava de lhe ter dado. Ela sorriu-lhe, mostrando a boca desdentada, mas não parou de tricotar. Ainda que os sofrimentos tivessem sido marcantes, a jovialidade e a vivacidade nunca a abandonavam.

Aquele gesto automático, repetido centenas de vezes sem parar, permitia-lhe relaxar-se fisicamente ao mesmo tempo que, mexendo apenas os lábios, rezava com constância.

— Êl você tem frio na cabeça, minh’àbó ?

— Nooom ! - respondeu-lhe com firmeza – Ê que m’esquêci de tirá-lo êsta manham, mêu home.

Parecia-lhe que não havia mais ninguém na casa e isso intrigava-o, mas não ousava sequer perguntar pela mãe. Hesitou, sem saber que dizer ou fazer. No momento em que ia abrir a boca, foi a avó que, vendo que era o momento propício, o informou:

— Tua mai está na cama a descançar. O que se passou onte pujo-a mi mal.

— É nom s’ocupou de bocê ? – perguntou aflito.

— Si, meu home, ocupou ! Nom t’atrapalhes !

Ficou com dúvidas por ela trazer o garruço, mas não insistiu. A Delfina parou de tricotar e pediu-lhe que se sentasse, precisava de lhe falar. Puxou uma cadeira e colocou-se quase em frente dela.

— Sabemos qu’ô que tua mai fijo nom se faz, mas hai que ber, é eu bi-o onte, qu’estaba mais cargada do qu’eu pensaba é qu’a bida lhe tem comido ôs nerbos, a razôm. Nom conseguiu dominar os desejos, àpetência, que foram mais fortes do qu’ela, é que lhe podem desgraçar a bida é mesmo matá-la. Precisa muito de ser protegida.

O Armindo ouvia-a sem tirar os olhos dela. Sentia-se ultrapassado pelos acontecimentos e pelo que a avó lhe dizia.

— Nós, as mulhêres é ós homes, temos marcos. Atê um certo punto, podemos auguentar a alegria, a pena é a dor. Passado este punto, sucumbe-se. A questom nom ê de saber se se ê bô ou nom, se nom se tem bergonha, se se ê uma perdida, mas se se tem forças pr’auguentar o peso dos sofrimentos causados pela falta do home, pola falta de bida, tanto na cabeça como no corpo, sim se lhes baixar. É tua mai nom pudo, meu home ! Tu tês que lhe falar, sinom inda s’interra mais. Sei que te bai custar muito, porque tês razom de pensar como pensas, mas hai que ber qu’ela nom soube o que fazia. Ô cio ê algo que já matou homes é mulhêres. Ê um capricho que te tolhe é que te pom com’uma criança. Q’ando a bontade te tenta, as entranhas reboltam-se, pêrdes a cabeça é nom sabes siquêr quem ês nim onde estás. Enq’anto nom satisfizêres esse diabo que te molesta, nom tês descanso, meu home !  Tu nom bás tardar im sabê-lo !

Calou-se e ficou a olhar para ele, abanando afirmativamente a cabeça, como para convencê-lo ou como para lhe provar a veracidade das suas palavras. O rapaz soltou um gemido impreciso. Não sabia se teria forças suficientes para derramar uma gota de consolo na alma agitada e ressequida da mãe. A avó era sempre a mesma : continuava a ser aquele ser benigno, sempre pronto a perdoar, e  cujo olhar aliviava os sofrimentos e fazia afortunados. Ficou encantado com a verdade, com a bondade que ela pusera no que lhe contara. Era o amor maternal que, mais uma vez, triunfava. Se tivesse tido uma mãe como a avó...

— Nom hai nada no mundo que seja mais precioso pr’ôs outros qu’àfeiçom que lhes poidamos dar. Tu, que tês sido a risada dôs labregos dô lugar, é lebado pontapês por seres como Deus te fijo, bem no sabes, meu home. Nom hai nada com’à bença dos outros. A compaixôm ê ô mais precioso dom que Deus nos pode dar. Por que bamos nós cambiar ô nosso destino é causar tormentos à gente, q’ando êl ê de lhes dar reconforto é alegria ?

O rapaz estava completamente embaralhado pela emoção extraordinária e violenta que a avó conseguia fazer-lhe sentir. Num instante, foi arrancado da melancolia, do desânimo e da sua sombria apatia. Uma última força consumiu-lhe os receios e as angústias, despertando-lhe o espírito, a vivacidade e a sagacidade.

— Nom lhe prometo nada, bó, só q’ando a bir.

— Sei quê duro mas tem que ser, Mindo. Pide a Deus que t’ajude. Bem sabes que, com Deus, tudo; sim Deus, nada.

Pegou nas agulhas e pôs-se novamente a tricotar e a orar. O rapaz olhou para a janela. O sol não ia tardar em esconder-se por detrás dos montes galegos que, de Orjás, se entreviam ao longe.

—  Bou ir-me à casa do Salbador num pronto. Quêr que lhe faça algo, bó ?

— Nom, meu netinho. Espero por ti. Tu bás é bês... Ô melhôr, tua mai inda se pôm a pê. Bota uma acha ô lume é pom-m’aqui ô copo com auga fresca. Despois podes ir com Deus. Bai sossegado qu’eu estou bem aqui. Fiquei contente por me teres oubido, Mindo.

O rapaz sorriu-lhe, fez o que a avó lhe pediu rapidamente e, depois de pegar na lanterna de bolso e na vara, pôs-se a caminho da casa do Salvador.

 

(continua)

 

SENTIMENTOS INSENSATOS XII

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Apertou a mão do rapaz com a força que lhe restava. Ele, apático, não desviava os olhos do rosto esquelético da avó. Percebia muito bem o que ela lhe queria dizer. Já se tinha esquecido, mas realizou por fim por que razão a lareira não fôra acesa.

— Eu nunca dei por ela, bó. É quem ê ô... ?

Não sabia como lhe chamar. A Delfina alçou os ombros. Quem quer que fosse, para ela, era-lhe totalmente indiferente. Preferia não sabê-lo.

— Como quêres qu’eu saiba, Mindo ? Eu nom posso ir atrás dela. Ô qu’eu sei ê qu’ela bai sempre q’ando tu estás no monte. É nom ê aqui, em Orjás, porque bem sempre a suar. Dêbe d’ir longe. Sabes, ô cio faz-t’andar, somos com’ôs animais.

Nunca tivera uma conversa destas com ela nem a avó lhe falara com tanta sinceridade. Sentiu uma satisfação enorme por a avó o considerar digno. Por sua vez, apertou-lhe a mão e fechou os olhos como se não quisesse que as palavras o invadissem.

— Atê aqui, - continuou a mulher, depois de uma curta pausa - sempre lhe perdoei tudo, bem ô sabes. Bês a bida dura, insuportable qu’ela me tem sempre feito. Nunca dei pio, mas hoje pola manham achei que chegaba. Ô mal que me fijo estes anos todos bai-m’empedrando. Ê-m’igual ô qu’ela faça da bida dela mas, q’ando penso nô teu pai, tenho que chorar. Êl qu’ê tam bô home ! Se sabe, mat’à. Agôra que mostrou mesmo no estado qu’está, nom sei que fazer. Se a contrariamos, bai ser piôr. Bai haber que ter pacência. Bai ser duro, mi duro, mêu home.

O Armindo enguliu a saliva com dificuldade. Virou a cara e deparou, preso no muro, com o único quadro fotográfico da casa. Era o avô, um homem corpulento, com um grande bigode esbranquiçado.

Estava furioso. Necessitava de tempo. Não era preciso nem achava prudente continuar a ouvir a avó. Aproximou-se dela e abraçou-a com meiguice. Estava quase a chorar.

— Nom digas nada à tua irmam sinom bai-s’enerbar é nom bal’a pena, meu hominho – segredou-lhe ao ouvido – Há-de sabê-lo numa melhôr ôcasiom, no debido tempo, se fijêr falta.

Abanou a cabeça afirmativamente e foi para a cozinha. Sabia por que razão a avó era a mulher mais respeitada, mais admirada, de todas as mulheres de Orjás. Sem exagerar, podia dizer que quase a veneravam como uma santa. Sempre mostrou, enquanto pôde, uma infinita e infatigável caridade pelos mais pobres, pelos mais fracos do lugar. Era de uma rara delicadeza e de um raro bom senso, apenas demasiado devota, talvez. Por muito triste que o seu coração estivesse, por sofrer há muito, tinha sempre nos lábios um sorriso de simpatia que atirava a confiança, a adoração. E portanto, quantas lágrimas, lágrimas de criança, lágrimas de mulher, lágrimas de mãe, lágrimas de velha, o seu rosto, já murcho, vira escorrer !

Era noite. Acendeu uma lanterna. A chuva martelava ligeiramente os vidros da janela. Agarrou na caneca do vinho e, ao ver que estava vazia, pegou na lanterna e foi à adega enchê-la. Fora, o vento começara a soprar, fazendo retinir o arvoredo do outro lado do caminho. O Fedelho, como se percebesse o ambiente tenso que reinava na casa, limitou-se a tirar o focinho e a olhar, sem abandonar a casota.

De volta, sentou-se à mesa, encheu a tigela de tinto fresco e pousou a caneca ao lado dele, à mão. A angústia ressequira-lhe a boca. Esvaziou a tigela de uma só vez e, como se habituara a fazer, fez estalar a língua com força no céu da boca. Ficou pensativo. Passara-lhe a vontade de ir falar com o Salvador. “Manham ê dia”- pensou. As palavras da mãe e da avó não lhe abandonavam a cabeça. Levantou-se e acendeu a lareira. A humidade sentia-se bem numa casa daquelas que não sabia o que era isolação. Encheu mais uma tigela que esvaziou em seguida. Com as costas da mão limpou os lábios. Prendeu o pote do caldo no fundo da corrente e foi perguntar à avó o que queria comer. Além do caldo, propôs-lhe ovos fritos. Não quis nada.

Sentou-se à mesa e encheu outra tigela que bebeu imediatamente. Não sabia que fazer. Tinha os nervos à flor da pele. Apetecia-lhe abrir a porta e berrar como um desalmado, como um condenado à morte, para que o lugar inteiro fosse testemunha da sua dor e do seu sofrimento. Durante mais de uma hora, ficou ali, sem mexer, sem pensar, a cabeça pesada, as pernas esquartejadas, as ideias destroçadas de tal modo que tinha dificuldades em conciliar os pensamentos. Nascera para padecer com resignação, com tolerância, estava visto. O destino perseverava, sem descanso e sem lástima, em perturbar-lhe a cabeça e acabar por destrui-lo.

Prendeu o pote, no qual a sopa estava a ferver, no meio da corrente e encheu mais uma tigela de vinho que livrou. Acabou por sentar-se na cadeira da avó e fechou os olhos. Vagarosamente, foi-se bambeando até que acabou por adormecer. Acordou umas horas depois, ainda noite. Doía-lhe a cabeça e sentia-se enjoado. O torpor invadira-o, sentia uma necessidade irresistível de dormir e experimentava uma espécie de volúpia narcótica em deixar-se escorregar no vago, no esquecimento, nas profundezas do nada. Levantou-se e foi deitar-se. Estendeu-se por cima da cama, vestido, como um vagabundo, e adormeceu profundamente.

XIII

O dia levantou-se com um céu azul clarinho, como se a chuva miúda do dia e da noite precedentes o tivesse purificado. O sol, ainda mal acordado, tratava de consertar o solo desembaraçando-o do excesso de água. Contentes por verem o sol regressar depois de um dia de chuva interminável, os galos do lugar cantavam ao desafio como se fosse um folguedo sertanejo.

A Palmira levantou-se à hora habitual e principiou a ocupar-se das tarefas que lhe permitiam lograr os pensamentos, os males que a achacavam diariamente. Lavou a tigela e arrumou a caneca ainda com vinho que tinham ficado por cima da mesa. De testa franzida, comeu as sopas de cevada com leite. Cogitava nas palavras absurdas que não devia ter deixado escapar da boca. Demasiado tarde. Gostaria tanto que Deus lhe fizesse desaparecer o passado para que pudesse recomeçar de novo a vida... Sabia que era impossível, que o epílogo seria fatal mas, quando uma pessoa se sente arrastada pelo desespero, só lhe restam os milagres. Não podia nem era razoável que se deixasse exceder por isso. Com certeza que ia passar uns maus momentos enquanto não conseguisse levantar a cabeça. A culpa fôra toda dela, reconhecia sensatamente.

Desceu as escadas ainda com mais vagar do que das outras vezes, foi à corte buscar a foucinha e a corda, e com o Fedelho que lhe seguia os passos ritmados mas ociosos, foram caminho fora em direcção das verdejantes leiras.

O Armindo sentira a mãe levantar-se mas, coisa que não se lembrava de ter feito, deixou-se estar na cama, embora acordado, até ela saír. Tivera um sono agitado e constantemente entrecortado de pesadelos. Sonhara que as pernas lhe tremiam desmedidamente e que todas as forças do corpo o tinham abandonado. Acordou, sentou-se na cama e deu um grande suspiro de redenção. O coração começou a bater-lhe mais depressa mas com um movimento regular, agradável, que lhe dava a sensação de um gozo físico, muito suave. Deitou-se mas depressa a escuridão lhe pareceu terrível, povoada de imagens que o horrorizavam e de fantasmas que se riam dele e lhe chamavam bastardo. Quando acordou, ainda tinha presente a aversão que lhe causara o último pesadelo: nuvens, de formas esquisitas e cambiantes, flutuavam no céu, avermelhadas pelos derradeiros clarões do pôr do sol, e que lhe pareciam sexos monstruosos que se procuravam e se acasalavam, rasgando-se num mar de sangue.

Não queria nem tinha vontade nenhuma de ver a cara da mãe. Como iria ser a vida dali em diante ? Não poderia, ainda que quisesse, voltar a ser como era, voltar a olhar para ela como dantes ou simplesmente voltar a cruzar o olhar com o dela. Era-lhe impossível. Havia qualquer coisa que o atrapalhava, que o impedia e que era mais forte do que a sua própria vontade. Uma vergonha, uma humilhação que o fazia sentir-se ferido nas suas entranhas, nas suas tripas. A mãe, além de mãe, era o pai, que apenas conhecia, era a sua terra, a sua amiga, a sua mulher... Deus era injusto para com ele. Era mais um fardo que tinha que arrastar, quando o espectro da mãe e do Teitei no moinho, há dez anos, continuava sempre presente e não deixava de importuná-lo, de afligi-lo até ao desespero.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS XI

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

— Onde fostedes, minha mai ?

— Fui à minha bida, se quêres saber. – retorquiu de mau humor.

Subiram as escadas pacatamente. O Fedelho, exausto, quase a arrastar-se, dirigiu-se para a casota. Não tinham acabado de sacudir os tamancos e já a Delfina perguntava do quarto :

— Ês tu, Palmira ?

Não obteve resposta da filha. Foi o neto que, enervado com o amuo da mãe, respondeu carinhosamente à avó.

— Somos nós, bó, somos. Quêr algo ?

— Nom quero, nom.

Sentou-se numa cadeira. Sentia que a mãe escondia qualquer coisa e isso fazia-lhe ressurgir fantasmas, espectros, que ele não queria desenterrar. Estava nervoso. A mãe, depois de deitar água numa bacia, lavou repetidamente a cara como se quisesse apagar a expressão colérica que se lhe desenhara no rosto. Algo se tinha passado pois via que estava contrariada. Olhou vagamente para a lareira. Começava a perceber por que razão não estava acesa. Não tinha dúvidas de que se passara algo mas preferiu não perguntar nada. Sabia que não tardaria em sabê-lo. Agora, queria mas era saber o que acontecera à mãe. Depois de respirar profundamente, interpelou com calma :

— Entom, ô que lhe passou, minha mai ?

A Palmira apartara a lenha que não estava completamente queimada e estava a barrer para juntar as cinzas, apanhá-las e acender a lareira. Parou, hesitando uns instantes, antes de, com manifesto custo, atirar com a vassoura e puxar uma cadeira na qual se sentou. Olhou para o filho com um olhar esquisito que ele não se lembrava de lhe ter visto. Fixou-o intensamente e interrogou :

— Êl tu quêres saber onde fui, ê ?

O rapaz, atrapalhado pela firmeza com que a mãe o arrostava, com a cara que lhe via, acanhou-se e duvidou da conveniência da questão. Conhecia-a muito bem. Desconfiou que ia ouvir coisas desagradáveis. Mas era demasiado tarde. Assentiu com a cabeça.

— Fui ber ô touro, meu filho, mas nom me quijo. Já sou belha, sabes ?

E, inesperadamente, desatou a chorar silenciosamente, sem deixar de o fixar. O rapaz, incrédulo, deu um salto na cadeira e, elevando a voz, disse-lhe :

— É ô meu pai que hai tantos anos ê obrigado a trabalhar no fim do mundo, bocê pensa nêl ? Bocê pensa no que pode acontecer s’êl ô cheg’à saber ? É a bergonha qu’ê, tam’em pensou ? Bocê nom está bem, minha mai !

A excitação já o tinha posto a transpirar. Era tudo confusão no seu jovem e tumultuoso espírito. O espectro do moinho fazia-lhe bailar o cérebro e crescer a raiva animalesca que há muito o entretinha e devorava. Naquele momento, tinha vergonha dela, de ser filho dela.

— É tu crês qu’êl pensa em mim ? – defendeu-se ela - Enganas-te, meu home. Hai muitos anos que nom quêr saber de mim. Quem me diz que nom tem lá outra, é ? Em bint’anos nim um ano passou aqui conosco. É eu, comó‘ma parba, passo três ou q’atr’anos à’spera dêl ? Tu nom sabes ô que custa acordar pola manham sozinha na cama, ô que se sofre q’ando nom hai com quem falar, nim o qu’ê nom ter futuro, nom ter  esp’ranças em nada, em ninguém. A minha bida nunca tube nim tem sentido. O meu tempo já passou é, inda que manham biêsse cargado d’ouro, nom me serbia p’ra nada, sabes ?

As palavras tinham-lhe saído do fundo da garganta, meias roucas. As lágrimas caíam-lhe por cima da mesa. As angústias, os tormentos interiores, até ali oprimidos, exprimiram-se com descarada insolência. O desespero e os remorsos traziam-na sujeita e devorada há muitos anos. Tirou um lenço enrugado do bolso dianteiro do avental e limpou-se grosseiramente. Estava exausta. Silêncio. As suas palavras, sem rodeios, tinham tronado na cabeça do Armindo, trespassando-lhe, depois, o corpo, como o cuchilho que penetra no coração do porco no tempo da matança e lhe arranca estridentes e insuportáveis guinchos de sofrimento. Os seus eram interiores.

A vida era mais complicada e subjectiva do que ele, modestamente, pensava. Cada qual tem a sua percepção, a sua ideia da existência, da felicidade e do momento mais propício para que estas possam desabrochar. De outro modo, com o tempo, tudo vai minorando, acabando por murchar e alterar o destino primitivo, dando lugar a um desespero, a um desvairo profundo, a um aberrante desgosto que, por sua vez, conduz ao rompimento das inibições e à repugnância da vida rotineira. Dolorosamente, a mãe queria fazer-lhe compreender que, no fundo, não era totalmente culpada, que os detrimentos provocados pela crueldade da vida, pelas diversas carências e pela solidão, assim como pela sua eterna fraqueza, eram tanto ou mais responsáveis  do que ela.

Naquele momento, gostaria de sumir-se, de nunca ter existido, de fazer qualquer coisa para impedir aquela infame desgraça. Faltaram-lhe as forças e a coragem. Os ossos tinham-se-lhe dilacerado no corpo e uma debilidade crescente apossara-se dela. Na cabeça e no coração tudo se desmoronava também. Sentia-se incapaz de dirigir decentemente  os movimentos mais simples. Levantou-se titubeando e, sem mais uma palavra, dirigiu-se para o seu quarto. A  mãe, encostada à cabeceira da cama, sem mexer e sem fala, viu-a passar diante da porta entreaberta  do seu quarto.

O rapaz sentia-se atordoado e consternado pelo desabafo inesperado da mãe. Ficara aterrado como quando tinha pesadelos e lhe dava a impressão de estar acordado. Não sabia que, em muitas coisas, as mulheres são mais vulneráveis do que os homens, mais frágeis. Confuso, ficou sentado, cotovelos por cima da mesa, a abanar a cabeça entre as mãos e o olhar no vago, longos instantes. Suspirou. Inesperadamente, deu uma murraça na mesa que saltitou. Ouvia-se o tic-tac do pequeno despertador que estava por cima do comprido móvel. Levantou-se, indiferente, e aproximou-se da janela, mas não via a chuva mansa que começara novamente a caír e escorregava nos vidros como se tivesse pressa de embeber a terra. Daquele momento de expontânea folia devaneadora a que a mãe o submetera, guardava a sensação de um vago e penoso asco, de uma tritura de todo o seu ser físico e moral. Era assim como num sonho febril, no qual as coisas se sucedem, incoerentes, irónicas e dolorosas.

— Ô Mindo, trazes-m’auga ?

Pareceu-lhe ouvir a ressonância duma voz que vinha de longe, sem saber de onde. A cabeça, confusa e desordenada, trabalhava a uma velocidade que nunca lhe conhecera. A raiva animalesca que o habitava era uma tentação difícil de controlar. A maldade latente e manhosa apressava-se por detrás. Não lhe chegava ter que combater para abrandar a fera que o queimava e que lhe roía a cabeça e a alma quotidianamente, não, tinha que suportar o espectro da infidelidade traiçoeira e imunda da mãe ! Estava mais do que farto. Por que diabo, quando a doença o atacou, não lhe acabou com a vida ?

— Ô Mindo, êl tu estás aí ? Trazes-m’auga ?

Desta vez, a Delfina subiu um pouco a voz já trémula. O moço não percebeu e então levantou-se e foi espreitar pela porta entreaberta do quarto da avó que se encontrava na obscuridade. Estava a ficar noite e ele não tinha reparado. A velhota, com um sorriso que lhe fazia entrar os lábios na boca desdentada, fez-lhe sinal com a mão para entrar. A água fora um pretexto. Sabia de que lhe queria falar a avó, pois sem dúvida que ouvira tudo. Tinha-lhe um respeito e um carinho muito grandes. Batendo devagarinho com a mesma mão desguarnecida por cima da cama, ao lado dela, convidou-o a sentar-se. Os seus olhos, agora pequeninos demais para as cavidades grandes que os alojavam, fitaram-no com mágoa. Abanou a cabeça pesadamente  para lhe exprimir a sua ponderação. Sentia-se incomodada mas não tanto como o Armindo podia pensar. Agarrou-lhe a mão do braço grande, que lhe foi estreitando de vez em quando, e disse-lhe baixinho:

— Tu bem sabes ô qu’eu gosto de ti é de tua irmam. Sei qu’ô que tua mai fijo nom ê bem mas tês que comprendê-la. Nôs últimos tempos nom anda nada bem. Inda hoje pola manham nôs pegamos. Eu bi logo qu’andaba co’ cio. Digo-te uma cousa, mêu home, é tu nom mo lebes a mal: o qu’ela te contou j’ó eu o desconfiaba hai muito. Sou mi belha é ela ê minha filha, sabes, é sempre bibim co’ ela. Por muito que quijêsse nom podia enganar-me.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS X

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Cansado e ofegante, pousou o saco por cima dum penedo e aproveitou para recobrar as forças tomando fôlego uns momentos. Encantado, deixou vacar pausadamente o olhar pela imensidão que o assombrava, que o fazia evadir-se e esquecer por uns curtos momentos o que o desgastava psiquicamente.

Chegou à azenha do “tio” Júlio  uma hora e um quarto depois de ter saído da casa. Havia um homem cujo segundo saco de milho estava a ser moido e, seguidamente, uma mulher com um único saco. Tinha quase para duas horas de espera. Como não os conhecia e não suportava o ruído  irritante que a mó fazia quando triturava o milho ou o centeio, depois de pousar o saco num canto, resolveu saír e sentar-se numa pedra na qual apoiara as nádegas pela primeira vez há muitos anos.

Os antebraços fincados por cima das coxas ficou a olhar para o regato que, devido aos constantes chuviscos das últimas semanas, vira o caudal espessar cada dia mais. Conhecia tão bem aquela corrente, aquelas pedras e aqueles pedregulhos... Os nefastos recordos eram inelutáveis.

Tinha sete anos quando, um dia de tarde, farto de divagar pelas paragens, decidiu juntar-se à mãe no moinho. Não ultrapassou o limiar da porta. Estacou repentinamente de olhos esbugalhados. A mãe e o moleiro, o velho Teitei, estavam sentados por cima duma grande caixa, ao lado da mó, agarrados um ao outro. Ele estava de costas para o miúdo enquanto que ela, de saia e saiote arregaçados, tinha a cara escondida no meio do peito do moleiro. Abafados pelo barulho da mó, ouviu a mãe soltar uns gemidos, umas queixas. O moleiro tinha a mão esquerda enfiada no meio das coxas leitosas da Palmira. Antes que o vissem, deu meia volta e foi sentar-se numa pedra a pensar no que acabara de ver. Sabia muito bem o que vira. A imagem do pai submergiu-lhe imediatamente o espírito. E ainda mais triste ficou por ser esse baboso de Teitei. Nunca gostara dele. Decidiu não voltar mais ao moinho com a mãe. Não queria voltar a ver a cara do moleiro.

No dia em que, pela primeira vez, disse à mãe que não queria acompanhá-la, esta, que não desconfiava absolutamente de nada, insistiu, pensando que não passava de um pequeno capricho e que o rapaz acabaria por se conformar. Ao aperceber-se da sua birrenta oposição, enervou-se e injungiu-o de acompanhá-la. Então, num desabafo colérico, raivoso, o miúdo gritou-lhe por sua vez:

— Nom bou ô moinho que nom quero bôltar a ber o que bi !

A Palmira, inquieta e a pensar o pior, perguntou-lhe o que vira. O miúdo, a chorar, lançou-lhe um olhar suplicante e, com voz mais moderada, disse-lhe:

— Tu bem sabes o que fazes nô moinho q’ando já nom hai ninguém.

Não precisou dizer mais nada. A mãe percebeu imediatamente. À noite, quando o foi deitar, fê-lo prometer que era um segredo que só os dois conheciam e que mais ninguém devia saber. Enquanto o Teitei foi vivo (morreu quatro anos depois), não voltou à azenha. Tinham passado dez anos, sem nunca mais terem falado no assunto. Estava como que enterrado ou, melhor, em suspensão, sem que soubesse por quanto tempo.

Chegou à casa depois da uma da tarde.  Esfomeado, empanturrou-se com duas malgas do palatal e nutritivo caldo habitual, que tinha fervilhado horas no pote preto por cima do braseiro, preso a meio da corrente. A mãe não estava e a avó, na cama, dormia profundamente.

Acabou de beber o resto do vinho tinto que tinha na tigela, limpou os beiços com o revés da mão e foi alongar-se por cima da cama. Sentia-se cansado, diminuido. Mais tarde, estava decidido, ia à casa do seu amigo, o Salvador. Era tempo de se afirmar. As pálpebras pesavam-lhe. Não tardou em adormecer.

XII

O rapaz abriu os olhos com calaceirice e virou-se para o lado da janela. Não sabia quanto tempo dormira mas sentia-se muito melhor. Ainda era dia. Agarrou-se com as mãos à cabeceira de ferro da cama e espreguiçou-se com indolência. Que bem lhe soube aquela soneca ! Repentinamente, os olhos raiaram-lhe e um belo sorriso iluminou-lhe o rosto. Sonhara com a Lídia, que vivia com ele na casa mas que era sua irmã. Ai, a Lídia matava-o. O silêncio adormecedor que reinava na casa não o puxava muito a levantar-se. Ficou uns minutos a raciocinar, olhando para uma mosca que explorava o tecto acastanhado do quarto. Pensou no que contava ir fazer à casa do Salvador e sentiu-se intimidado. Não era o primeiro a fazer o que, finalmente, se podia considerar uma coisa ordinária mas necessária. A sua dificuldade consistia em ter que passar por ele. Portanto, fora ele que, involuntariamente, lhe pedira ajuda. O homem, sem qualquer preconceito, propôs-se imediatamente para ser intermediário. Não, tinha razões para se sentir atribulado. Ele não tinha coragem para fazê-lo directamente. Por causa da enfermidade, temia encontrar-se perante uma relutância. Os desvios, as diferenças sempre amedrontaram as pessoas. Sobretudo nos lugares onde a compreensão e os conhecimentos são tão reduzidos como o meio.

Sentou-se na beira da cama e esfregou os olhos com satisfação. Calçou as botas ainda húmidas da chuva e pôs o chapéu na cabeça. Ao passar diante do quarto da avó, reparou, através da porta entreaberta, que estava acordada.

— Ô bó, onde foi minha mai ?

— Eu nom sei, meu home. Hai muito que saiu. – respondeu-lhe a mulher que, antes de ele falar, já tinha dado pela sua presença.

— Bocê quêr algo ?

— Nom senhor, meu hominho. – disse-lhe com voz gratificadora.

Foi sentar-se no limiar da porta de entrada. Onde diabo teria ido a mãe ? Quando ele chegara já ela não estava e, desde aí, tinham passado mais de três horas. Quando chegou do moinho, o Fedelho não estava deitado no seu posto. Como o tempo estava de chuva, podia estar na casota. Mas, depois de se sentar à porta, ficou certo que também tinha ido com a mãe, de outro modo, e ainda que chovesse, tinha vindo ter com ele e deitar-se ao seu lado.

O dia estava nebuloso mas a chuva, de momento, sossegara. Se persistisse nos dias seguintes, também lhe estragava o projecto que tinha em mente. Levantou-se e foi às cortes visitar os seus amigos, os animais. Entre eles, havia uma cumplicidade lhana e expansiva. A insensibilidade que as pessoas lhe manifestavam, e que ele considerava como desdém, fê-lo aproximar-se e agarrar-se, cada vez mais, aos animais.  Às vacas, às cabras e ao porco deu-lhes umas palmadinhas amigáveis na garupa. Acariciou-os a todos, dando umas cenouras e batatas a uns e feno e erva a outros. Ficou uns minutos a observá-los, contente. Fechou a porta das cortes à chave e foi ao lado, à adega. Junto do pipote que estava encetado, tinha sempre uma pequena caneca de lata virada por causa do pó. Encheu-a de vinho, que espumou, e bebeu-o com imenso prazer. Ah ! – exclamou-se, ao mesmo tempo que fazia estalar a língua no céu da boca. Gostava de uma boa pinga com agulha, de vez em quando. Foi fora, ao lado da porta, e passou a caneca pela água da chuva que enchia um velho pipote ali encostado. Fechou a porta e dirigiu-se para as escadas no momento em que o portão de ferro se abria e dava passagem à sua mãe e ao Fedelho.

Esperou por eles, observando-os. O cão trazia as patas enlameadas, a dona, os tamancos. Pelo andar, mais penoso do que habitualmente, via-se que vinham ambos de dar uma longa caminhada. Pareciam lassos. Quando a mãe se lhe juntou, reparou que suava.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS IX

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

X

A manhã começou com uma chuva miudinha mas persistente. A Palmira ocupou-se da mãe com a habitual negligência. Depois de lhe dar as sopas, que a Delfina ingurgitou paulatinamente, acendeu a lareira cuja pedra ainda estava morna e, depois de a vestir, sentou-a na consumida cadeira.

Ocupou-se seguidamente das tarefas diárias habituais. Mas, quando depois da  chuva ter parado quis ir passear com a mãe para o quinteiro, deparou com uma ferronha resistência da sua parte. Não tinha as forças suficientes para tal, argumentou. Não se sentia mal nem estava doente. Uma simples baixa de forma, concluiu. A filha, desconfiada e contrariada, não cessou de ralar, de importuná-la, até que a mulher, cansada de ouvi-la, disse-lhe que queria ir deitar-se.

— Nom tem nada qu’ir p’rà cama. Nom está doente é inda hai pouco que se lebantou. Está mi bem aí sentada.

Não falou mais. Como se ela não estivesse ali, e com a languidez de ânimo inveterado que a distinguia, ocupou-se a preparar a lavadura para o suíno.

A pobre Delfina parecia fixar a lareira mas, através da cortina colorida das chamas, imaginava um rosto impreciso que a confortava, uma mão familiar aberta que se avançava para ela como se quisesse consolá-la... O desleixe, a incompreensão, o fastio e a desafeição que a filha lhe exprimia causavam-lhe uma pena, um sofrimento atroz. Não só a feria mas parecia ter prazer em fazê-lo e em mostrar-lhe que era intencional. Arranhava como os gatos. Esta maneira de ser germinara nela tão naturalmente como os efeitos da sua triste vida se reproduziram nas suas feições. Tornou-se áspera e pesarosa porque uma pessoa que é infeliz na vida sofre e o sofrimento engendra a amargura, a malvadez. E em vez de se vitimizar pessoalmente, virou-se contra a mãe que era a mais indefesa.  As lágrimas chegaram-lhe à porta dos olhos mas compeliu-as a ficarem por ali. Então, escorreram-lhe interiormente, fazendo-a tremer ligeiramente. Nem chorar diante dela podia sem correr o risco de ter que sujeitar-se às suas ignomínias.

Estática na cadeira, lembrava-se do gosto, do amor que sempre tivera e tinha por ela. Quando ela e o Abílio, ainda novos, souberam que não podiam ter mais filhos, redobraram de carinhos e de atenção para com a Palmira que ainda era uma miudinha com pouco mais de quatro anos. Foi crescendo como uma moça sensível, impenetrável que, talvez por ser morgada, já lutava contra as fortes decepções da vida. A sua doçura inicial foi-se transformando numa indiferença egoista, num baluarte contra a dureza da vida, numa capacidade espantosa que consistia em preservar e proteger “a sua vida, a sua pequena vida.” Fora a maior riqueza que Deus lhes dera e tudo fizeram para se mostrarem dignos do dom. Os anos foram passando e, depois de casar e ser mãe, o seu carácter foi degenerando lentamente, até chegar a este ponto de abdicação, de negligência moral e amorosa. Ela e o Abílio nunca tiveram nada e nunca nada lhes faltou. Viveram felizes. A filha e o homem tinham uma casa em condições, tinham comprado um grande campo, um bom monte, tinham estudado a filha que ganhava bem a vida, tinham bom dinheiro no banco na vila, mas não era suficiente para serem felizes. Tinham muito e faltava-lhes tudo. A vida decerto que tinha uma grande parte de culpa mas não era uma razão para se vingar nos outros.

— Bou dar de comer ôs animais.

Entretida no passado, só ao reparar no balde e no cesto que a filha tinha nas mãos, é que a Delfina percebeu o que ela lhe tinha dito. Sentiu um frio descer por ela e apertar-lhe o coração dorido. Não respondeu nem olhou para ela. Voltou a fixar as chamas da lareira. Decidiu ignorá-la, como ela lhe fazia constantemente. Hesitava entre o desejo sensual de mãe e a revolta contra a maldade pérfida da filha. Decidiu desafiá-la, importuná-la e, embora com muito custo, deixar de refugiar-se no amor maternal para tudo lhe perdoar. Estava farta da tirania ambígua que a filha sustentava havia anos, desta tirania perfeitamente incorporada na sua vida, na sua substância. O seu olhar demonstrava repreensão, os gestos, desprezo e as suas palavras eram uma alusão penosa à sua velhice. A vida, que para ela tinha sido de uma longa docilidade, em dez anos, tornara-se uma súplica constante e muda. A crueldade até os remorsos lhe havia de comer. Ouviu a porta guinchar duas vezes. Saíra e, para castigá-la, não lhe perguntara, como costumava, se queria ir deitar-se. “Ai que bid’à minha ! Já hai tanto que nom ando a fazer nada neste mundo, Senhor. Êl bós esquecestes-bos de mim !” Desde que o Abílio ficara doente, a vida foi-se-lhe tornando pouco a pouco mais dolorosa. Quantas vezes pediu a Deus que a levasse para a sua beira ! Sabia, por experiência, que a acção de morrer era penosa pois ainda é vida, mas não tinha medo. A morte é outra coisa, é boa, pensava, é apaziguadora. Com os dias que passavam, cada vez mais fastidiosos, ia aprendendo a morrer. Deixou duas pesadas lágrimas sairem-lhe dos olhos.

Nunca desejara tanto a vinda do Belardo. Tinha muito que lhe contar da vida ruim a que a filha a obrigava a abaixar-se. “Ê bô home, ô Belardo. A sorte dele foi ter andado sempre por fora”, pensou. De outro modo, a filha era mulher para o transtornar e acabar por convertê-lo.

Ajeitou-se na cadeira e, com a ponta dos pés, baloiçou-se ternamente. Pensou na neta que estava nos Arcos. Não tinha nada da mãe e alegrava-se por isso. Orgulhava-se por lhe ver as qualidades e os sentimentos que herdara dela. Era por estas razões que ela e a mãe não podiam entender-se. Já se tinham disputado ambas várias vezes por causa do ambiente discordante, sinistro e asfixiante em que trazia a avó mergulhada. “Ê mi boa moça.” A sua sorte também foi viver fora da mãe senão já tinha havido uma desgraça naquela casa.

O Mindo, coitado, esse era corajoso, trabalhador e, como o pai, bom e habitado por uma extraordinária força de vontade. Tivera má sorte, o mal não o poupara mas, ao contrário da Palmira, sofria em silêncio sem embaraçar ninguém. Saber sofrer em silêncio, ao avesso do que se pensa, acaba por aliviar. Com o tempo, acabamos por conhecer as nossas doenças, os nossos sofrimentos e habituamo-nos a viver com eles. Cada qual arrasta a sua infelicidade, os seus defeitos, a sua cruz. A vida é uma doença, mais ou menos longa, incurável, uma sucessão de grandes ou pequenos sofrimentos, aos quais só a morte pode pôr fim.

Adormeceu com a cara virada para o lado da lareira e as mãos cruzadas por cima do regaço.

XI

Quando o Armindo saiu da casa, havia muito que a chuva fininha começara a caír. O chão do caminho da azenha estava ensopado e, em determinados sítios, escorregadiço. Com o saco de milho às costas e a vara na mão, o rapaz foi encurtando a distância que o separava do regato. Conhecia os buracos, as pedras e as bossas que o caminho tinha, tantas vezes o percorrera.

Quando era miúdo e que o tempo estava quente e de sol, gostava de acompanhar a mãe. Depois, enquanto que ela esperava pela sua vez para moer o milho ou o centeio, conversando com as outras pessoas presentes, deambulava à volta do moinho observado, fascinado, as coloridas libelinhas, abundantes por ali, que arrasavam os poços de água pouco profundos em busca de alimento. Ou, então, pulava como um saltimbanco pelas graúdas pedras que atravancavam o curso da água do regato, cantando, até que a mãe chamasse por ele.

Chegou a um sítio onde o caminho iniciava uma descida abrupta. Era uma vertente vertiginosa, duma beleza rara. Ao fundo, ainda que o céu estivesse agrisalhado e uma determinada humidade pairasse no ar,  viam-se vários lugares espalhados e rodeados de campos magnificamente lavrados.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS VIII

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Levantou-se e, depois de lavar as mãos, pôs-se a caminho da feira. Passou diante da estação de camionetas que despejavam rebanhos de pessoas azafamadas, vindas das inúmeras aldeias do concelho. Desceu em seguida, mais à frente, uma rua onde já havia algumas tendas e que desaguava na alameda cuja metade esquerda estava totalmente invadida pelas barracas de cores extravagantes e garridas dos tendeiros. Gostava de ir cedo à feira para evitar os errantes ociosos, os madraços que, a partir de determinada hora, passeavam pela feira brincando e namoriscando e estorvavam quem verdadeiramente lá ia para comprar. E, ao mesmo tempo, podia contemplar, passear o olhar e escolher calmamente, quando realmente queria fazer compras.

Estava um belo dia de sol outonal com um céu completamente azul. Contudo, devido à proximidade do rio e à presença das numerosas e densas tílias que faziam o charme da alameda, as pessoas sentiam um pequeno frio ambiente. Ela, que estava acostumada desde sempre ao frio extremo, quase que podia dizer que era um dia lenitivo, de princípio de primavera.

Misturou-se à multidão de camponeses, carregados de sacos e de embrulhos sumários, que se moviam em todos os sentidos e que eram o grosso dos feirantes. Caminhava lentamente, reparando mais nas pessoas do que nos artigos, nos objectos ou nas roupas que os vendedores expunham por cima das bancas ou dependuravam em cabides. Só passados uns breves momentos constatou e se lembrou que não era uma feira como as outras. Havia muita mais gente e diferente do que nas feiras habituais por ter calhado um feriado. Inumeráveis pessoas, que habitualmente trabalhavam, tinham aproveitado a aprazível manhã para percorrerem familiarmente a alameda e farejarem os bons artigos.

Não tinha em mente nenhuma intenção de comprar, como sempre, mas, por último, acabava por encontrar graça ou utilidade a qualquer bugiganga ou peça de lingerie. O seu prazer era escrutar, fitar atentamente os rostos, avaliar o carácter através das roupas, da fala, distinguir os tiques, o feitio, as alegrias e as tristezas, a miséria, os provincianismos... Era como o olho da consciência ao qual nada escapa, mas que não expele qualquer julgamento. Com que júbilo tentava penetrar naquelas modestas consciências tão comuns, tão pouco diferentes de aspecto ! Era um mundo de aparência, de carnaval e de ilusão, onde a verdade dificilmente era acessível. No meio de tanta gente que se parece, encontram-se por vezes pessoas das quais dizemos : “parece fulano ou beltrano” e, quase que imediatamente, reparamos que não é verdade, que estamos a brincar connosco, com o nosso sonho, como um gato com o rabo. “Não vou tardar em fazer estudos de sociologia”, pensou, ao mesmo tempo que deitava uma visada distraida a uma blusa.

Pôs-se novamente em marcha, ao reparar que a vendedora se precipitava sobre ela. Era-lhe insuportável esta mania que os comerciantes tinham de coagir as pessoas.

Tinha percorrido as barracas que se encontravam do lado do rio. Mais para diante, era a feira dos animais: vacas, porcos, todo género de ovinos, galináceos, coelhos... Atravessou a estrada com cuidado e principiou, em sentido contrário, a visita de outras tantas tendas, estendais e alguns quiosques. Daquele lado, a multidão era mais densa pois ali se encontravam numerosos comércios, armazéns, restaurantes e cafés.

As folhas mortas que, apesar de não haver vento, se desprendiam das grandiosas tílias já meias carecas, alinhadas dos dois lados da alameda, depositavam-se, torbilhonando, rapidamente e em quantidade, por cima das barracas montadas há poucas horas. O inverno estava cada vez mais perto e o outono afastava-se cada vez mais.

O olhar estagnou-lhe numa tenda de lanifícios na qual vendiam meias, camisolas, luvas, cachecóis, garruços, coisas simples mas prácticas e cada ano diferentes. É claro que a tendeira, que se encontrava no outro lado com duas clientas, notou de imediato o seu interesse e lançou-lhe :

— Escolha, minha linda senhora, escolha que eu vendo mais barato do que dado. Só um momentinho que já sou sua.

Riu-se, era a filosofia popular que se exprimia da maneira mais simples e vernácula. Olhou para a tendeira, coberta de lã (a melhor maneira de publicitar o que vendia), com as luvas (punhetes) cortadas na ponta dos dedos, história de poder manejar comodamente as moedas e as notas. Tinha cara de descendente de mongol. O olhar sagaz da Áurea não devia enganá-la. Conseguia ver para lá das aparências. Procurava compreender a alma, o espírito e a fisionomia das coisas e dos seres cujos efeitos são os acidentes da vida e não a própria vida. Uma mão não está apenas presa a um corpo mas exprime e continua um pensamento que há que compreender e completar. O dom de ler nas consciências provinha-lhe do sentimento de que a realidade que lhe era dada a contemplar parecia-lhe bem mais verdadeira do que aquela a que só os sentidos acediam. “Onde estariam as suas raízes? Quantos povos estiveram ou passaram pelo nosso país? Quantos descendentes deixaram ficar?”A maioria das pessoas não reparava nas diferenças morfológicas que as distinguia e que são como um carimbo num passaporte, como um objecto que tem marcado por detrás made in. Muitas gerações passaram e o país acabou por ser um mosaico de raças. A mais marcante e numerosa, a que mais se retardou no nosso país, e que, por isso, mais descendentes deixou no condado, é a  que  os portugueses menos apreciam.  É certo que ninguém pode escolher os seus pais, mas abjurar as suas origens, as suas raízes... é como renegar-se a si próprio. “Tenho mesmo que fazer estudos de antropologia... e, se calhar, talvez de psicologia, também.”, voltou a dizer-se.

Pegou num par de meias de lã bem grossas, à sua medida, e procurou, no meio dum grande monte, um cachecol que não fosse muito comprido e que não tivesse cores muito berrantes. Acabou por encontrar um não muito grande, dum branco pálido que lhe agradou.

— Escolha, escolha, minha linda senhora ! Se calhar estou enganada e ainda é menina...

— É verdade, ainda sou menina – respondeu a Áurea com um agradável sorriso.

— Desculpe-me mas como as lindas meninas não ficam solteiras muito tempo...

A jovem mulher corou timidamente. Caíra na ratoeira. “Patifona !” – pensou.

— Atão não compra mais nada? – à negativa da Áurea, continuou – Compre umas luvinhas, menina, você tem umas mãozinhas tão delicadas !

A rapariga sorriu-lhe amavelmente e pagou sem regatear ao constatar que o que lhe pedia não era exagerado. Despediu-se. Mas o diabo da tendeira não pôde ficar por ali.

— Atão continuação de um bom dia e a ver se p’rà próxima lhe posso chamar senhora, tá bem ?

A rapariga assentiu abanando a cabeça. “Tremenda mulher ! - pensou, respeitosamente - Com um moral e um humor destes não devia ser fácil que se deixasse abater. Pelo menos, aparentemente.” Quanto mais convivia com as pessoas, mais gostava delas e de sociologia.

Com o pequeno saco plástico, no qual a mulher lhe metera o cachecol e as meias, continuou, mais alegre ainda, o passeio matinal pela feira. Gostara da mulher. Gostava das pessoas alegres, com força e humor inabaláveis, que possuiam um determinado sentido da vida. Embora nativa, era muito nova para conhecer profundamente a “filosofia”, a “psicologia” comportamental montês. À primeira vista, a dos feirantes, dos ciganos era mais subtil, mais efusiva. Seguramente que o viajar foi um factor preponderante, senão principal.

 

(continua)

 

SOFRIMENTOS INSENSATOS VII

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

VIII

O Armindo, a mãe e a avó acabaram de cear. A Palmira ajudou a mãe a sentar-se na cadeira, junto da lareira, enquanto lavava a louça com a água bem quente que pusera a ferver no lume. O rapaz, ainda sentado à mesa, olhava para a tigela meia de vinho que tinha diante dele. Gostava de guardar uns bons golos para o fim. Era uma mania que agarrara já não sabia quando.

O dia de hoje fora excepcional, o mais feliz que o Armindo tivera. Riu-se. Pensava na Lídia. “Ê tam bonita, ê tam...”, suspirou interiormente. Não conseguiu acabar a frase. Ele compreendia-se. Tinha a sensação de planar, como quando admirava as aves que vagueavam libremente por cima da sua cabeça, nas alturas celestes. Estava ansioso por que chegasse a madrugada. A noite anunciava-se duradoura.

O candeeiro a petróleo de lata preso no tecto iluminava moderadamente a espaciosa cozinha. Na lareira, no meio de um manto de brasas enrubescidas, uma derradeira acha, que ainda tinha longa vida, fazia saracotear num vira uma labareda luzidia e multicolor. A imagem dos três naquela lúgubre e silenciosa cozinha era duns tempos avelhentados e esquecidos.

A Palmira acabou de lavar a louça e acendeu o pesado candeeiro de cerâmica cor de rosa para levar para o quarto. Acordou a mãe, que toscanejara um pouco enquanto ela estivera ocupada, e, como sempre, só a levou para o quarto depois de ela fazer as necessidades na retrete. Ajudou-a a vestir a camisa de dormir de flanela e deitou-a na cama, aconchegando-lhe bem os cobertores que, depois, prendeu dos lados. Voltou novamente à retrete buscar o bacio para deixar junto da cama da mãe. Simples precaução. Nunca o utilizara. Apesar da idade adiantada da mãe, tinha uma grande sorte por ela não sofrer de incontinência. Pegou no candeeiro e, sem dirigir uma última palavra à mãe, foi para o seu quarto, ao lado, do qual fechou a porta sem barulho.

O Armindo, frenético, quando sentiu a mãe entrar no quarto, apagou o candeeiro, abriu a porta da casa e sentou-se na soleira. O ar fresquinho e puro surpreendeu-o agradavelmente. O silêncio, fortuitamente entrecortado pelo ladro abafado de um cão, era profundo. A lua, quarto crescente, arrojava sombras prateadas e errantes sobre o denso arvoredo que havia do outro lado do caminho.

Sentiu um ligeiro ruido do lado direito e, ao virar a cara, deparou com o Fedelho que subia as escadas vagarosamente, agitando o curto rabo. Veio enrolar-se ao seu lado, encostando-se-lhe aos pés. Pousou-lhe a mão no focinho e acariciou-o demoradamente, dizendo-lhe baixinho: “É, meu Fedelho, êl tu nom estabas bém a dormir, é ?” A casota dele ficava por debaixo das escadas. Fora o Belardo que lha construira com tijolos, há muitos anos.

Deixou-se estar bastante tempo sem mexer. Insensivelmente, acabou por se enterrar num estado de dormência que o fez esquecer momentaneamente a brutal realidade da sua consternante vida e reviver os adoráveis momentos que passara com a Lídia. Ah ! Se pudesse mergulhar eternamente na profundidade destes líricos pensamentos... Lembrou-se do que lhe dissera uma vez o Salvador: “Pensar no que se gosta ê bibê-lo .” Tinha que falar com ele. Estava disposto a enfrentar a realidade, prestes a devorar tudo, a renegar-se para viver uma existência comum. Era o seu direito elementar. Acabara por se ver como um moribundo que só vê a maldade latente e manhosa da vida diante dele. A noite, embora dolorosamente, permitia-lhe dar vazão, através dos sonhos, dos pesadelos, ao desencadeamento da violência íntima, da animalidade. Na noite, reina um mundo inquietante, uma solidão insuportável que nos permite manifestar, exteriorizar os nossos males e os nossos conflitos físicos e morais. Se a vida era um obstáculo a forçar, forçá-la-ia, ainda que saisse espumado, sangrado e de rastos. Ai, maldita infância, que não quer morrer ! Era tempo de ser homem. Quanto mais depressa, melhor. “Hai que bater ô ferro enq’anto está quente”, pensou, decidido. Se não visse o Salvador, ia à casa dele.

Levantou-se e pôs-se a mijar do cimo das escadas. Mandou o Fedelho embora, fechou a porta que chiou fugazmente e foi meter-se na cama. Naquela noite, não precisou das revistas da irmã para poder ter um pequeno mas extático e singular momento íntimo de prazer.

Às sete, como fazia diariamente nesta época, o Armindo estava de pé. Ainda era noite. A mãe já estava na cozinha a preparar a cevada. A Delfina acordava bem mais tarde. Não era que tivessem que fazer mas as noites eram cada vez mais longas e insuportáveis. Antes das dez estavam na cama. Descansar demasiado tornava-se aborrecedor, num cansaço cada vez mais fatigante.

Lavou a cara e foi apressadamente para a retrete. A cena repetia-se todas as manhãs. Passava um tempo infinito a aliviar-se. Desde que principiou a fazer as necessidades livremente, ainda pequenino, habituou-se a cantar na retrete, coisa que a mãe, apesar de se ter acostumado, achava disparatada.

Esfarrapou depois para uma das grandes malgas brancas, repleta de cevada com leite, quase meia peça de pão. Tragou a malga de sopas em poucos instantes.

— Tês q’ir à ‘zenha moer um saco de milho, Mindo, hai pouca farinha.

— É quêr que ba pola manham ?

— Ê-m’igual, mêu filho.

Na capoeira, o galo anunciava as primeiras claridades da alvorada que principiavam a manifestar-se com timidez. O céu estava encoberto. Não sabia o que fazer. Queria falar com o Salvador mas... Talvez fosse melhor ir ao moinho de manhã e dar um salto de tarde à casa do amigo.

— Tam’ém tenho qu’ir ber  s’ô Salbador m’arranjou a cana de pesca.

O velho amigo era um enorme amador que conhecia como ninguém os melhores recantos de pesca do riacho. Havia bastantes dias que o rapaz lhe levara a cana que o pai lhe trouxera da França para lhe reparar o carreto que se blocava. A mãe não lhe respondera, sinal de que tanto lhe dava. Ela evitava sempre contrariá-lo. Tinha as suas razões. Os animais podiam passar o dia na corte. Não era a primeira vez nem era o feno que faltava para lhes dar de comer. Assim decidiu.

IX

Quarta-feira, feriado e feira nos Arcos. A Áurea, que se levantava sempre cedo para ir trabalhar, aproveitava, como cada vez que tinha um dia de descanso, para calacear sossegadamente um bocado na cama. Corrigia alguns deveres ou então mergulhava-se na leitura de um dos numerosos livros da biblioteca que tinha sempre à mão e que eram o seu instrumento predilecto de repouso.

Tomara o pequeno-almoço e continuara, preguiçosamente, sentada à mesa, meditativa. A casa onde estava hospedada situava-se na pitoresca parte histórica da vila. Quando não tinha que ir trabalhar, o pequeno-almoço proporcionava-lhe uns momentos de considerável préstimo. Da galeria, onde estava e tomava todas as refeições, via nascer o dia e entrevia uma larga parte do rio que ladeava a estrada de Monção, através dos grandes vidros das diversas janelas. Os raios do sol, ainda fracos, depois de se refractarem nas águas límpidas e serenas do Vez, penetravam os vidros das janelas, acariciando-lhe e aquecendo-lhe modestamente o rosto. Sentia-se bem.

Na casa, viviam os pais da Natália e ela. O pai era funcionário municipal e não estava longe da reforma. A mãe ocupava-se da casa e duns campinhos situados do outro lado do rio, que tinham comprado há muito para poderem economizar nos legumes. O sossego era digno dum mosteiro. A liberdade e o respeito eram totais.

 

(continua)